1.4.10

Tudo que nos representa

Detesto o tom "professoral", e perdoe se farei uso dele. Mas é rápido, prometo. Faça um exercício e, na próxima refeição, ao escolher o que vai comer, pergunte a si mesmo: por que como isso? Surgirão explicações de várias naturezas, ideológicas, políticas, culturais, psicológicas, éticas, de saúde... Pronto. É apenas um bom começo para deixar de se fazer, mecanicamente, algo que, três ou mais vezes ao dia mantém conexões profundas com o mundo à nossa volta, que é definitivamente afetado e transformado por nossas escolhas. Pode parecer fútil, inútil, falar de alimentação, mas estou mesmo é falando de política, lato sensu - e vamos desenvolver o tema em outro post, e de cultura. Por ora, fiquemos com as questões culturais que envolvem o ato de comer.

Vamos à macaxeira cozida que comi dia desses. Tomei emprestada a frase, para o título deste post, de um grande amigo, Eduardo Marini. Ele sempre repete a bendita quando o assunto é qualquer coisa que se relacione com sua identidade cultural, e de que goste MUITO. Normalmente, atribui aos (e nos) botequins da vida e a tudo que a eles se relaciona, cerveja de garrafa, batatinha calabresa, bolinho de bacalhau. Também cabe quando a conversa (de botequim, claro) é sobre música. Paulinho da Viola, Caetano Veloso "é tudo que me representa".

Lembrei da frase porque, ao sentar para escrever este post, sobre as delícias que uma amiga nordestina preparou (aipim cozido com manteiga, paçoca de carne de sol com feijão fradinho e um mexido de jerimum com charque e cebola), lembrei que a intenção do almoço era justamente fazer com eu me lembrasse um pouco do Brasil. O convite surgiu depois de uma aula no mestrado em que debatíamos a importância da alimentação brasileira para os brasileiros imigrantes. Impossível descrever o quão fundamental é o papel da comida para amenizar as agruras de quem vive longe.

Os que estão fora de seu país não poupam esforços para "arranjar" uma comida qualquer que os aproxime de casa. Para quem não pode bancar uma refeição na rua (sim, só em Coimbra há oito restaurantes especializados em culinária brasileira), resta "contrabandear", pedir para os parentes enviarem pelo correio, exigir que os amigos tragam quando vão ao Brasil. E dá-lhe pacote de pão de queijo Yoki, café Caboclo, carne de sol, farinha de mandioca fininha, feijão preto, doce de leite (porque o daqui "não é igual"), e por aí vai.

Isso ocorre porque o ato de escolher o que se vai comer é uma peça fundamental deste grande mosaico que é nossa identidade cultural. Optar por determinados alimentos e não por outros é dizer: "isso é tudo o que me representa". Comemos macaxeira, aipim ou mandioca, carne de sol, abóbora porque somos brasileiros. E Shirley, a responsável pelas delícias das fotos acima, come e cozinha estes ingredientes sobretudo porque é nordestina (de Natal). No último livro de Massimo Montanari publicado no Brasil, "O mundo na cozinha: história, identidade, trocas" (Senac, 2009), o historiador diz logo na introdução: "Exatamente como a linguagem, a cozinha contém e expressa a cultura de quem a pratica, é depositária das tradições e das identidades de grupo. Constitui assim um extraordinário veículo de autorrepresentação e de comunicação (...)."

Portanto, que os brasileiros não se furtem das macaxeiras da vida, que é como exercer nossa brasilidade, dar ao corpo à mente o que eles precisam para saber a que mundo pertencem.

3 comentários:

Paloma disse...

Belo post, Inezita! Uma verdadeira aula magna! bjo
Paloma e Isa

Paloma disse...

SAUDADE!!!! Só você pra me fazer chorar logo cedo, em plena Sexta-feira da Paixão! bjo
Paloma e Isa

Eduardo Marini disse...

Você é tudo o que me representa... Eu te amo.