1.12.11

O "Frango tite" de Ferreira Gullar


Faço aqui uma singela homenagem ao maior poeta brasileiro vivo - vivíssimo, diga-se, aos 81 anos - que pela segunda vez levou o Jabuti: uma historinha deliciosa contada por Ferreira Gullar, O Grande, que vem bem a calhar neste sítio. Atenção para o "realismo socialista dos restaurantes da Lapa". E para o "triste" significado de "tite", claro. 


Frango tite


Não tão rara quanto o peru nem tão frugal quanto o ovo, a galinha, comida de domingo, era naquela época o símbolo da fome nacional. Já muito antes de nós, o Barão de Itararé diagnosticara: "quando pobre come frango, um dos dois está doente".
Tenho proposto com certa insistência que alguém escreva, no Brasil, a sociologia da galinha, ou pelo menos defina o papel da galinha na psicologia nacional (sem alusões ao sexo mal definido como fraco). Na biografia dos brasileiros, na alma de cada um de nós, embrulhados aos nossos sonhos e desejos, estão alguns cacarejos, uns batidos de asa, um ovo roubado, uma clarinada matinal...
Mas foi o Sá quem descobriu a saída. Se durante a semana, estávamos condenados ao restaurante do Calabouço, domingo tínhamos obrigação de melhorar o cardápio. E o problema não era simples, pelo menos para mim. No Calabouço, com uma carteira falsa de estudante, eu pagava dois cruzeiros por refeição. Pagamento simbólico evidentemente. Bendito simbolismo que eu, na literatura, tratava com desprezo. Mas, aos domingos, não havia Calabouço: tinha-se que enfrentar mesmo o realismo socialista dos restaurantes da Lapa.
Mas o Sá descobriu que no China da Riachuelo, perto dos Arcos, servia-se aos domingos por preço de banana um prato que se chamava, sem rodeios, frango com arroz. E era verdade. Esse prato restaurou em nós a perdida dignidade dos domingos de outrora, iluminados sempre por uma galinha-ao-molho-pardo ou um frango-com-farofa-de-miúdos... Era com outra alma que a gente agora lia os suplementos dominicais, almoçava média com pão e manteiga, e esperava a noite. Sim, porque o frango era servido precisamente às sete horas da noite. E a freguesia, naturalmente, era grande. A partir das 6 e meia começava a chegar o pessoal que, como quem não quer nada, espiava para as mesas e ficava por ali - pois o frango era pouco e ninguém queria correr o risco de degradar seu domingo. Às 7 em ponto, o garçom anunciava:
- Atenção, pessoal, vai sair o tite!
Seguia-se o rebuliço das últimas disputas e arranjos: "Dá licença de botar uma cadeira a mais na sua mesa?" "Mas já tem cinco." "Se não, vou perder o frango..." "Deixa o rapaz sentar." E lá vinha, em pratos feitos que fumegavam por cima de nossa cabeça, na bandeja do Jacinto, o frango com arroz, vendido inexplicavelmente por cinco pratas. Também, quinze minutos depois, quando mal acabávamos de devorar o último farelo do frango, já se ouvia, irônica, a voz do garçom:
- Acabou o tite! Agora só sopa de entulho!
O "tite "... Por que "tite"? Aquele domingo saí com essa pergunta na cabeça. O Jacinto não dizia "vai sair o frango", dizia "vai sair o tite"...
Manifestei minha estranheza aos companheiros de quarto e o Sá, que lia Novos Rumos, retrucou com desprezo:
- Curiosidade pequeno-burguesa. Vê se algum operário, podendo comer frango por cinco pratas, vai-se preocupar com a gíria do garçom!
O Sá tinha razão. Tratei de esquecer o problema e fomos, mais uma vez, ao frango do China, ao tite com arroz. Mas eu vivia os meus últimos domingos de glória, pois, pouco mais tarde, deparei com o Jacinto tomando hidrolitol, no Largo da Lapa, e não resisti.
- Tite é o seguinte - explicou-me ele. - O senhor Shio, dono do restaurante, faz as compras da semana todo domingo na feira do Largo da Glória. Os frangos e galinhas são trazidos em engradados, se machucam na viagem e alguns chegam na feira morre-não-morre. O senhor Shio, sabendo disso, vai logo perguntando pros feirantes: "Tem galinha tite? Tem galinha tite?" E assim - continuou Jacinto - compra tudo o que é galinha triste que há na feira. Umas estão apenas tristes, outras já morreram de tristeza, mas o chinês compra assim mesmo. E justifica: "Vai moler mesmo!" - disse Jacinto, soltando uma gargalhada. Eu ri também, mas sem achar a mesma graça. Dentro de meu estômago, acabara de se converter em tristeza a euforia de tantos jantares dominicais, a cinco cruzeiros velhos, velhíssimos. Quando contei a história ao pessoal, o Sá me fuzilou com os olhos "Você é um estraga-jantares!"
Fez-se um longo silêncio naquele anoitecer de domingo.
O Sá falou finalmente: - Bem, vamos à sopa de entulho!

28.9.11

Arroz de alho da Alcione


Passei algumas horas com Alcione, na casa dela, e foi indescritível. Só lamento não ter provado da sua comida... A fama de cozinheira de mão cheia desta maranhense carismática como poucos corre o mundo -- até Gilberto Gil elogiou. Diz Alcione que gosta mesmo é dos pratos típicos de sua terra natal. Conversamos um pouco sobre isso, ao final da entrevista que fiz. E aproveitei - não sou boba nem nada - para pedir uma receita. Mas vou descartar o formato tradicional "ingredientes-modo de preparo" aqui, vale mais a pena ler as palavras da própria Alcione. Fala, Marrom!

Eu - Me dá uma receita, Marrom...

Marrom - Claro, receita de quê? Tem uma farofa de Neston que eu faço muito boa...
Eu - Farofa de Neston, não. Você já falou dela na televisão, eu vi no youtube.
Marrom - Ah, então tá, vou te dar uma receita de arroz de alho, gosta de alho?
Eu - Adoro!
Marrom - É para quando você chegar cansada do trabalho e quiser comer alguma coisa rápida. Aí tem aquele arrozinho guardado... Você pega uma panela ou frigideira, bota manteiga, umas três cabeças de alho picadas e estala dois ovos ali dentro. Quando está para ficar bom, você joga o arroz ali dentro, mexe rápido e apaga o fogo. E come. Não tem coisa melhor! Come e corre para o abraço! A gente pede perdão para Deus. Quando o ovo estiver ficando no ponto que você gosta de comer, joga o arroz. Não pode deixar muito mole. Vem com o gosto do alho, da manteiga e do ovo. Só com aquilo você janta. 
Eu - Sensacional... E o que você mais gosta de comer? Aquele prato que só de pensar já dá água na boca? 
Marrom - A coisa que mais gosto de comer é cuxá com arroz branco, ou arroz de cuxá. E torta de caranguejo, que é o melhor prato do mundo! Minha especialidade é torta de caranguejo, ninguém faz melhor do que eu nessa família. Eu sou imbatível. Agora, minha irmã faz uma torta de camarão seco e um bolo de aipim que ninguém faz melhor. Aquele bolo molhadinho, sabe? Hummm...  



Dona Onça: não tem preço




A primeira coisa que alguém me disse quando contei que ia ao Dona Onça, no Copan, foi qualquer coisa como "não pago 40 contos num prato de rabada mas nem que a vaca tussa..." Pois eu paguei e me regalei. Nossa senhora, nunca antes na história desse país houve uma rabada como aquela - para usar um jargão tão batido quanto o próprio praro. E meu marido raspou o prato de carne moída com quiabo, ovo frito, arroz branco. Também não tenho palavras para descrever a cremosidade e o sabor da polenta que acompanhava minha rabada - para ser despejada no prato ao gosto do frequês.

Tudo no Dona Onça é delicioso - exceto o preço, claro. Uma caipirinha sai por cerca de R$ 18,00. Acho um exagero. Mas confesso que, ao final, pagamos satisfeitíssimos. Saímos com a impressão de que, sim, é caro, mas sim, vale a pena. A conta, com entradinha, dois pratos, duas cervejas, caipirinha, sobremesa (mousse de chocolate com calda de frutas vermelhas?) e cafezinho, custou cerca de R$ 230,00. Não é para todo dia, obviamente. E sempre haverá os que acham que rabada boa só no boteco na esquina. Vá lá que eu também adoro uma tosquice, mas a rabada do boteco da esquina vale pelo preço, ambiente e todo o resto, menos pela comida em si. Já a do Dona Onça, simplesmente, não tem preço.

Ops, já ia esquecendo. Recomendo vivamente também os mini sanduíches de linguiça caseira como entrada.

Dona Onça
Avenida Ipiranga, 200, São Paulo

11 3129-7619
Metrô República

11.4.11

Boa surpresa no Bar do David, no Chapéu Mangueira




Começamos, eu e Sérgio Bloch, a fazer as pesquisas para o nosso Guia Gastronômico das Favelas do Rio - o título é provisório -, o segundo da série depois do Guia Carioca da Gastronomia de Rua. E estivemos, na semana passada, no Bar do David, no Chapéu Mangueira, charmosa favela do Leme. David serve uma feijoada de frutos do mar deliciosa, bem temperadinha, com feijão branco, camarões, lula e mariscos que, jura o dono do restaurante aberto há um ano, são pescados por ele (!). Além de simpático e dono de um belo sorriso, David é mergulhador e pescador.  Uma porção (gigantesca) de arroz branco, um potinho de uma saborosa farofa de alho, molho de pimenta caseira para acompanhar o prato e está garantida a satisfação do cliente.

A feijoada tem feito sucesso às sextas-feiras, e para quem trabalha ou está de bobeira por Copacabana ou Leme durante a semana, recomendo uma visita ao lugar. Para subir o morro, faça uso dos serviços de um mototaxi na entrada da ladeira Ari Barroso. E não se preocupe: o Chapéu Mangueira, assim como o Babilônia, ao lado, estão pacificados. No David, a porção "individual" sai por R$ 10,00, mas eu poderia, tranquilamente, dividir com outro esfomeado. Já o meu querido Sérgio, famoso bocão, devorou a dele sozinho. Enfim, quando se trata de comida boa, quantidade é algo relativo.

David só abre para o almoço, de segunda a sábado, e tem sempre quatro opções de pratos feitos por dia. Três delas nunca mudam - o filé de peixe com purê (R$ 8,00), filé de frango com purê (R$ 8,00) e o contrafilé com fritas (R$ 10,00). Os que passaram por mim a caminho de outras mesas me deixaram com água na boca. Diariamente, há sempre um prato diferente, pode ser carré, costela com agrião e outros. Na cozinha, quem comanda as panelas é a irmã de David, Maria Lúcia, que gosta de ser chamada de "Baby". Vida longa aos dois e à sua feijoada de frutos do mar.

31.3.11

Enchendo linguiça

Não sei quem escreveu, de onde surgiu, nada, nada. Só sei que duas amigas me enviaram por email, é um texto que rola por aí, nos infinitos domínios da internet. Achei que seria legal postar aqui, é super criativo e revela a importância dos atos relacionados à alimentação, dos ingredientes etc. para o nosso dia-a-dia. A língua portuguesa está repleta de expressões metafóricas que têm a comida como tema, e alguém resolveu alinhavar boa parte delas num texto único. Vejam, é bem legal:

"Quando comecei, pensava que escrever sobre comida seria sopa no mel, mamão com açúcar. Só que depois de um certo tempo dá crepe, você percebe que comeu gato por lebre e acaba ficando com uma batata quente nas mãos. Como rapadura é doce mas não é mole, nem sempre você tem idéias e pra descascar esse abacaxi só metendo a mão na massa. E não adianta chorar as pitangas ou, simplesmente, mandar tudo às favas.

Já que é pelo estômago que se conquista o leitor, o negócio é ir comendo o mingau pelas beiradas, cozinhando em banho-maria, porque é de grão em grão que a galinha enche o papo.

Contudo é preciso tomar cuidado para não azedar, passar do ponto, encher lingüiça demais. Além disso, deve-se ter consciência de que é necessário comer o pão que o diabo amassou para vender o seu peixe. Afinal não se faz uma boa omelete sem antes quebrar os ovos.

Há quem pense que escrever é como tirar doce da boca de criança e vai com muita sede ao pote. Mas como o apressado come cru, essa gente acaba falando muita abobrinha, são escritores de meia tigela, trocam alhos por bugalhos e confundem Carolina de Sá Leitão com caçarolinha de assar leitão.

Há também aqueles que são arroz de festa, com a faca e o queijo nas mãos, eles se perdem em devaneios (piram na batatinha, viajam na maionese...etc.). Achando que beleza não põe mesa, pisam no tomate, enfiam o pé na jaca, e no fim quem paga o pato é o leitor que sai com cara de quem comeu e não gostou.

O importante é não cuspir no prato em que se come, pois quem lê não é tudo farinha do mesmo saco. Diversificar é a melhor receita para engrossar o caldo e oferecer um texto de se comer com os olhos, literalmente.

Por outro lado se você tiver os olhos maiores que a barriga o negócio desanda e vira um verdadeiro angu de caroço. Aí, não adianta chorar sobre o leite derramado porque ninguém vai colocar uma azeitona na sua empadinha não. O pepino é só seu, e o máximo que você vai ganhar é uma banana, afinal pimenta nos olhos dos outros é refresco.

A carne é fraca, eu sei. Às vezes dá vontade de largar tudo e ir plantar batatas. Mas quem não arrisca não petisca, e depois quando se junta a fome com a vontade de comer as coisas mudam da água pro vinho.

Se embananar, de vez em quando, é normal, o importante é não desistir mesmo quando o caldo entornar. Puxe a brasa pra sua sardinha que no frigir dos ovos a conversa chega na cozinha e fica de se comer rezando. Daí, com água na boca, é só saborear, porque o que não mata engorda."

17.3.11

Jamie Oliver nas páginas amarelas

Vamos de Jamie Oliver! Uma entrevista publicada na revista Veja, em junho de 2010. Esse menino sempre tem algo interessante a dizer...



3.3.11

Viva o Mocotó!




O Mocotó é meu mais novo restaurante preferido em São Paulo. Tudo bem que ele não é tão novo assim nem faz tão pouco tempo que estive lá, levada por Claudinha, minha amiga, minha irmã. O lugar existe desde os anos 70, mas a nova fase começou há menos de cinco anos, com o jovem chef Rodrigo Oliveira, filho de Zé Almeida, dono do estabelecimento. Para quem não é da Zona Norte, chegar lá, na Vila Medeiros, pode ser uma longa jornada, mas vale cada segundo de trânsito, eventuais voltas para encontrar o caminho e qualquer meia hora de espera na fila.

Caldo de mocotó, linguiça, escondidinho, chips de aipim, panelinha de carne com aipim e legumes... o cardápio é extremamente criativo, brasileiríssimo, nordestino para ninguém botar defeito. E tudo que provei da cozinha beirava a perfeição. Sem falar no clima descontraído do lugar - que tem preços justos, aliás -, na cerveja de garrafa, na cachacinha, nos amigos. Viva o Mocotó, já estou com saudades!

2.3.11

Magret de pato e outras coisinhas da Manu Zappa






Fiz uma aula de magret de pato com a querida chef Manu Zappa, no Prosa na Cozinha! Em tom super informal, descontraído, uma turma de oito pessoas aprende as receitas deliciosas que ela prepara de três a quatro vezes por semana. Ontem à noite foi a minha vez.

Manu é craque - e fã de batatas, como eu. Cozinha com jeitão espontâneo, ensina como quem quer aprender, sem verdades absolutas. Nem barrigão de oito meses a impede de qualquer coisa. Aprendemos a fazer magret de pato, com uma tal couve frita - ou crocante, para ficar mais chique - que, eu disse ontem mesmo, ganhou o prêmio revelação da noite, e purê de pesto. De sobremesa, um suflê de chocolate facílimo e delicioso.
Ou seja, sensacional. Valeu, Manu!

Quem quiser saber mais, clique aqui.
Eu recomendo!

22.2.11

Agora vai!

Quem é vivo sempre aparece.
Quero dizer que, contra a vontade de todos vocês, eu voltei.
Portanto, me aguardem.