29.3.10

Câmara Cascudo II

"Há muitos anos discutiu-se no Brasil se o esporte estava deseducando a mocidade ou era o alheamento às fontes da literatura clássica, dando equilíbrio, medida, clareza, disciplina.

Para mim, um dos fatores negativos é a decadência nacional da refeição doméstica, o abandono dos pratos tradicionais no cardápio de certos grupos sociais mais fornecedores de rapazes e moças aos colégios e às universidades. Não é o alimento em si, na potência intrínseca de sua substância, a fonte isolada da força vital. São os elementos psicológicos decorrentes da refeição. Cada vez há menos refeição e mais comidas, fáceis, encontráveis, vendidas nos botequins elegantes ou nas cantinas universitárias. A alimentação das classes jovens fundamenta-se numa série de sucedâneos e de "provisórios", de coisas supletivas, aperitivais, respondendo à fome sem eliminá-la. Há comida sintética, indicando na orla do menu o número de calorias contido. Prever, pelo dinamômetro, a intensidade da energia útil suficiente para abraçar a noiva. (...) Perde-se a continuidade na padronização do cachorro de qualquer temperatura e do sandwich de qualquer coisa. Do sapiens ao qualunque.

"História da alimentação no Brasil" (1967-1968)
pp.350-351, Global Editora, 2004

27.3.10

A carne não é fraca


Iris Palhas traçou com prazer um sanduíche recheado de patê de cogumelos, alface e semente de linhaça enquanto dava esta entrevista. Soa 'natureba'? Pois então saiba logo o que interessa: Iris nunca comeu um pedaço de carne em todos os seus 27 anos de vida. Um mísero bife, uma fatia, um naco sequer. Nada. É um caso raro, por isso, musa absoluta dos seus colegas de 'ovolactovegetarianismo', e filha e neta de vegetarianas (o que explica uma boa parte do fenômeno).

Iris é lisboeta, formada em Eco-Agroturismo e não conhece ninguém com um histórico de renúncia à carne como o seu (tampouco eu e, muito provavelmente, você), mas sabe que "existem alguns muito poucos em Portugal". É uma jovem alegre, sorridente, agitada, faladeira, engajada, militante - prega aquilo que pratica, mas não se engane, Iris não é inconveniente. Pelo contrário. Sobre as razões que a levaram a manter seu vegetarianismo mesmo quando já podia escolher o que comer, foi tão poética quanto evasiva: "Apenas fico contente por estar viva, correr, pular, me divertir e ser feliz sem precisar matar e comer animais". Leia a entrevista de Iris a esta blogueira e, depois, belisque um pastel de tofu preparado por ela e anote a receita - aliás, a moça cozinha e muito bem. Portanto, fique à vontade.

A pergunta óbvia: como você chegou até aqui sem comer carne, sequer na infância?
Sou a terceira geração de vegetarianos da minha família, fui educada assim. Não sei dizer as razões que levaram minha avó a ser vegetariana, sei apenas que nasci com isso. Já aconteceu de eu comer sem querer uns pedaços de peixe numa sopa. Aliás, caldos em geral podem ser perigosos...

E quando começou a crescer, questionou, pensou em desistir...?
Pensei. Até ir para a escola, ser vegetariana para mim era normal, era simplesmente a minha alimentação de casa, do dia-a-dia. Mas os colegas perguntavam, achavam estranho, então passei a questionar também. No entanto, resisti. Depois, aos 19 anos, já na universidade, questionei a sério, eu me perguntava se não devia pelo menos experimentar, conhecer. Fui procurar entender melhor o vegetarianismo, estudar, ler, ver filmes, saber se podia me causar problemas. Foi aí que me engajei de verdade, me tornei consciente. Hoje me considero vegetariana por opção, por razões ecológicas e outras, mas principalmente porque não gosto da ideia de comer animais - afinal, nós, seres humanos, também somos animais.

Você se sente diferente dos outros, de todas pessoas que conhece, por nunca ter provado um pedaço de carne?
Sim, me sinto diferente. Este é o aspecto mais importante da minha vida, da minha educação, da minha profissão. Se eu não fosse vegetariana, seria uma pessoa totalmente diferente. É no fato de não comer carne que baseio todas as minhas escolhas, da comida aos lugares que frequento, livros que leio, tudo. É a minha maneira de ver o mundo.

Imagino que não seja fácil ser vegetariana neste mundo. São muitos percalços?
Depende. Já tive que trabalhar fazendo compras para um restaurante e me sentia indisposta na ala das carnes do supermercado, por exemplo. Posso ter problemas para comer fora, mas é raro. E nunca deixei de ser convidada para a casa das pessoas... porque também como de tudo, não sou aquela vegetariana radical, que só come cereais integrais, etc. Longe disso!

Ah, você come as chamadas "bobagens" também?
Claro! Eu tenho os mesmos problemas de alimentação que todo mundo! Quando fico angustiada como muito... e adoro chocolates, doces, batata frita... tudo o que faz mal! Tive uma fase em que engordei bastante, aí precisei aprender a comer outras coisas, porque já estava enjoada de omeletes!

***
Iris presenteou este Anastácia com receitas e fotos deliciosas. Concebeu muitos pratos durante estágios universitários, especialmente um que teve um tema de nome compriiiido: "Elaboração de um manual de alimentação vegetariana para estabelecimentos de restauração e bebidas". Mas vamos por partes. Por ora, fique com o pastel de tofu, feito e fotografado por ela e que foram elaborados com:

- tofu triturado com alho e sal de ervas da figueira da Foz (das Salinas Eiras largas)
- batata cozida e desfeita
- cebola picada
- salsa picada
- ovo
- azeite
- óleo para fritar


25.3.10

Câmara Cascudo I

Decidi que vou postar 'pílulas' de Câmara Cascudo, que pretendo serem diárias, vejamos. A leitura de "História da Alimentação no Brasil" (1967/1968) deveria ser obrigatória para qualquer brasileiro em formação escolar. Por acaso, hoje acordei irritada com a ideia de que dietas curam tudo, de que a salvação dos males do mundo está na mudança alimentar (estar irritada com a ideia não quer dizer que eu não concorde em parte com ela, que fique bem claro). O que me incomoda mesmo é o fundamentalismo. E adoro o tom muitas vezes irônico de Cascudo. Vamos lá, à página 366 da edição da Global, 2004:

"Aloysio de Castro, num discurso aos doutorandos [em Medicina, provavelmente?] de 1924, resume a sátira de Tristan Bernard aos imprevistos dietéticos. O homem gordo quis emagrecer. Exercícios. Dieta. Ficou com as pernas finas. Banhos de lama. Dieta. Resfriou-se. Laringite. Dieta. Curou-se mas o estômago tornou difícil a digestão; falta de apetite. Dieta gástrica, corretora. Voltou a engordar."

Ah, sim, parênteses: a foto é de uma barraca de orgânicos, com direito a 'grama' para curar todos os males, no inesquecível Borough Market, em Londres.

Sacolas de mercearia

sabe como é que faz
para ser feliz nessa porcaria?
sair andando
carregando
sacolas de mercearia

23.3.10

Quem é que não gosta de sardinha? (e de Amália?)




"O carapau e a sardinha"
Amália Rodrigues

De uma sardinha fresquinha
Diga-me lá quem não gosta
Salpicadinha, viva da costa
Assim vivinha,
Chegadinha de Cascais
Prateadinha
De comer, chorar por mais

Quem é que não gosta
Quem é que não gosta
De uma sardinha
Salpicadinha da costa?

Quando se ouve o pregão
Vê-se logo a mesa posta
Comer à mão, como se gosta
Muito gordinha
No pão saloio a pingar
Uma buchinha
Prá sardinha não queimar

Juntei uma petinguinha
Com um lindo jaquinzinho
Ela assadinha, ele fritinho
O casamento naquele dia se fez
Foi o padrinho o verdinho português

Quem é que não gosta
Quem é que não gosta
De uma sardinha
Salpicadinha da costa?

O carapau e a sardinha
Qual é o mais popular?
É a sardinha, não há que errar
Dos jaquinzinhos
Bem fritinhos, gosto eu
Mas a sardinha
É um petisco do céu

Quem é que não gosta
Quem é que não gosta
De uma sardinha
Salpicadinha da costa?

21.3.10

O pão quentinho de Óbidos

Coisas que só se pode ter em Portugal: deliciosos pães recheados preparados por simpáticas senhoras em sua simpática cozinha na linda e muito mais que simpática cidade de Óbidos. Se alguém um dia rascunhasse uma lista de remédios para a alma, colocaria certamente o pão caseiro quente no alto do ranking - ali, em primeiro ou segundo lugar, tendo como companheiro a batata assada com manteiga e o mingau de aveia com açúcar e canela...

Lá em casa - "minha casa" ampliada, que inclui as casas da minha avó, tios e tias -, entre um pão e outro preparado pela dona Ignez, minha avó querida, há sempre uma polêmica em torno dos segredos que envolvem o preparo de um bom pão, "é a mão do cozinheiro", "é o tempo de descanso", "é a temperatura do forno"... Lá pelas tantas, dona Cecília, responsável por esta que vos fala, repete sempre a mesma frase, em tom choroso: "Eu nunca aprendi a fazer pão como a sua avó". Sabe, sim, mãe, claro que sabe. É que o pão da mãe da gente é sempre melhor que qualquer outro!

Devo dizer que devoramos em família - eu e as tias! - este pão quentinho da foto, acompanhado de um bom vinho bebido no gargalo, dentro de um carro. Pão quente, vinho, família: é para ficar com a alma lavada!

20.3.10

Brigadeiros de saudades

Os brigadeiros são para você, minha doçura, minha irmã querida, para lembrar os incontáveis que já dividimos metendo nossas colheres na mesma panela.
Bel, a sua camiseta diz 'LOVE'.
Eu também.

Sol para as maçãs



Andei por aqui e ali em Coimbra e descobri que há qualquer coisa mágica neste lugar. Só não vê quem não quer. Mas, definitivamente, é preciso que haja sol. As maçãs precisam de luz para posarem bem nas fotografias.

17.3.10

Batatas ao murro na Pharmacia

O último sábado foi um dia feliz. Como diz a música, não vivemos esperando dias melhores? Pois então sábado foi um dia melhor. Senti como se os meus 32 anos e alguns meses bem vividos soubessem exatamente por quais razões afinal tinham me trazido até aqui, a Coimbra, e que exatamente aqui eu estivesse no sábado 14 de março de 2010, um dia lindo de sol, um dia feliz, melhor, num restaurante chamado Pharmacia. Ali descobri porque vivi todo este tempo, tracei determinados caminhos, fiz as escolhas certas e finalmente cheguei até aqui: para comer as batatas ao murro - e veja bem: com cebolas! - que vocês podem admirar na foto. O lombo de bacalhau delicioso que as acompanhava é outra história. Batatas ao murro, Coimbra, sol, dias felizes, dias melhores.

Restaurante Adega Típica Pharmacia
Rua do Brasil (quer rua melhor?), 81/85, Coimbra

16.3.10

Uma rabada e uma epifania


Vejam, não há nada de muito especial no fato de se comer uma rabada. A princípio, pelo menos, não deveria haver nada de muito especial. Acontece que a beleza dos momentos, os tais segundos de felicidade dos quais são feitas as nossas vidas, como já disse alguém, estão justamente nas coisas mais simples, nos atos mais corriqueiros, do cotidiano, da vida ordinária que levamos, do rame-rame, enfim. A princípio, pelo menos, é lá que deveriam estar nossas promessas de alegria. E eis que aí entra a rabada. Simples. Aliás, de uma simplicidade rara - a rabada leva pedaços de carne dura, despretensiosa, lentamente cozida, e batatas. Outras vezes, mais legumes, como cenoura. No Brasil, agrião. No entanto, a despeito da sua própria simplicidade, não há o que se compare a uma bela rabada. Um dia alguém me disse "minha mulher prepara uma rabada sensacional lá em casa: sem gordura nenhuma". Aquele SEM GORDURA me soou terrivelmente, fez marcas nos meus tímpanos. Não bastasse o SEM GORDURA gritante, o sujeito acrescentou um "nenhuma". SEM GORDURA NENHUMA. Jesus. Então, nomeemos o novo prato, o tal rabo de boi light, mas nunca vamos nos referir a este atentado com o nome de RABADA. Ora, tudo tem seu lugar.

Por fim, os momentos de prazer que tive quando comi a rabada para sempre registrada na foto acima, em Madri, (e a imagem bem dá mostras do quão saborosa estava a maldita) são intraduzíveis, verdadeira epifania. As madeleines de Proust sentiriam inveja do meu rabo.

12.3.10

O PCO de Toledo e alguma esperança

Que tal o o PCO (Pão Com Ovo, claaaaro) criativo dos espanhóis de Toledo?

Reparem: ainda estou com uma certa resistência a voltar a escrever neste querido Anastácia (as razões de uma certa paralisia criativa eu prefiro guardar cá comigo), por isso, por enquanto, vamos em doses homeopáticas. Mas a chamada "gaveta" no jargão jornalístico, meu baú inédito de comidinhas e histórias, está cheia. Quem sabe tudo melhore a partir de agora. Aguardemos.

Ah, as verdinhas de Madri...


Azeitonas de Madri: as primeiras, no mercado San Miguel, bem pertinho da Plaza Mayor, e a segunda, num restaurante ordinário - em quase todos os lugares que um sujeito entra para comer em Madri, são lindas, reluzentes e deliciosas as azeitonas...