Faço aqui uma singela homenagem ao maior poeta brasileiro vivo - vivíssimo, diga-se, aos 81 anos - que pela segunda vez levou o Jabuti: uma historinha deliciosa contada por Ferreira Gullar, O Grande, que vem bem a calhar neste sítio. Atenção para o "realismo socialista dos restaurantes da Lapa". E para o "triste" significado de "tite", claro.
Frango tite
Não
tão rara quanto o peru nem tão frugal quanto o ovo, a galinha,
comida de domingo, era naquela época o símbolo da fome nacional.
Já muito antes de nós, o Barão de Itararé
diagnosticara: "quando pobre come frango, um dos dois está
doente".
Tenho proposto com
certa insistência que alguém escreva, no Brasil, a sociologia
da galinha, ou pelo menos defina o papel da galinha na psicologia nacional
(sem alusões ao sexo mal definido como fraco). Na biografia dos
brasileiros, na alma de cada um de nós, embrulhados aos nossos
sonhos e desejos, estão alguns cacarejos, uns batidos de asa, um
ovo roubado, uma clarinada matinal...Mas foi o Sá quem descobriu a saída. Se durante a semana, estávamos condenados ao restaurante do Calabouço, domingo tínhamos obrigação de melhorar o cardápio. E o problema não era simples, pelo menos para mim. No Calabouço, com uma carteira falsa de estudante, eu pagava dois cruzeiros por refeição. Pagamento simbólico evidentemente. Bendito simbolismo que eu, na literatura, tratava com desprezo. Mas, aos domingos, não havia Calabouço: tinha-se que enfrentar mesmo o realismo socialista dos restaurantes da Lapa.
Mas o Sá descobriu que no China da Riachuelo, perto dos Arcos, servia-se aos domingos por preço de banana um prato que se chamava, sem rodeios, frango com arroz. E era verdade. Esse prato restaurou em nós a perdida dignidade dos domingos de outrora, iluminados sempre por uma galinha-ao-molho-pardo ou um frango-com-farofa-de-miúdos... Era com outra alma que a gente agora lia os suplementos dominicais, almoçava média com pão e manteiga, e esperava a noite. Sim, porque o frango era servido precisamente às sete horas da noite. E a freguesia, naturalmente, era grande. A partir das 6 e meia começava a chegar o pessoal que, como quem não quer nada, espiava para as mesas e ficava por ali - pois o frango era pouco e ninguém queria correr o risco de degradar seu domingo. Às 7 em ponto, o garçom anunciava:
- Atenção, pessoal, vai sair o tite!
Seguia-se o rebuliço das últimas disputas e arranjos: "Dá licença de botar uma cadeira a mais na sua mesa?" "Mas já tem cinco." "Se não, vou perder o frango..." "Deixa o rapaz sentar." E lá vinha, em pratos feitos que fumegavam por cima de nossa cabeça, na bandeja do Jacinto, o frango com arroz, vendido inexplicavelmente por cinco pratas. Também, quinze minutos depois, quando mal acabávamos de devorar o último farelo do frango, já se ouvia, irônica, a voz do garçom:
- Acabou o tite! Agora só sopa de entulho!
O "tite "... Por que "tite"? Aquele domingo saí com essa pergunta na cabeça. O Jacinto não dizia "vai sair o frango", dizia "vai sair o tite"...
Manifestei minha estranheza aos companheiros de quarto e o Sá, que lia Novos Rumos, retrucou com desprezo:
- Curiosidade pequeno-burguesa. Vê se algum operário, podendo comer frango por cinco pratas, vai-se preocupar com a gíria do garçom!
O Sá tinha razão. Tratei de esquecer o problema e fomos, mais uma vez, ao frango do China, ao tite com arroz. Mas eu vivia os meus últimos domingos de glória, pois, pouco mais tarde, deparei com o Jacinto tomando hidrolitol, no Largo da Lapa, e não resisti.
- Tite é o seguinte - explicou-me ele. - O senhor Shio, dono do restaurante, faz as compras da semana todo domingo na feira do Largo da Glória. Os frangos e galinhas são trazidos em engradados, se machucam na viagem e alguns chegam na feira morre-não-morre. O senhor Shio, sabendo disso, vai logo perguntando pros feirantes: "Tem galinha tite? Tem galinha tite?" E assim - continuou Jacinto - compra tudo o que é galinha triste que há na feira. Umas estão apenas tristes, outras já morreram de tristeza, mas o chinês compra assim mesmo. E justifica: "Vai moler mesmo!" - disse Jacinto, soltando uma gargalhada. Eu ri também, mas sem achar a mesma graça. Dentro de meu estômago, acabara de se converter em tristeza a euforia de tantos jantares dominicais, a cinco cruzeiros velhos, velhíssimos. Quando contei a história ao pessoal, o Sá me fuzilou com os olhos "Você é um estraga-jantares!"
Fez-se um longo silêncio naquele anoitecer de domingo.
O Sá falou finalmente: - Bem, vamos à sopa de entulho!
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