9.5.08

Tia Chupetinha





Tia Chupetinha é um must! Deixo vocês com o texto delicioso que meu amigo Eduardo Marini - aliás, um gourmet de primeira - escreveu para a Revista Brasileiros e gentilmente cedeu ao Anastácia. E não preciso dizer mais nada (as fotos são minhas. A Brasileiros não publicaria estas imagens terríveis)

O Tempero de Tia Chupetinha
Um restaurante em plena favela de Vigário Geral, na Zona Norte do Rio, atrai famosos e até estrelas internacionais como o ex-talking head David Byrne. Tudo é digno de respeito,
mas o grande prato, é sem dúvida, a impagável dona do pedaço

Por Eduardo Marini

É sempre oportuno desconfiar de lugares em que a comida, na descrição do crítico, é “um mero detalhe”. Na maioria dos casos, esse clichê mais batido do que escalope de cantina serve para esconder armadilhas que oferecem propostas em vez de pratos. Mas para felicidade geral - e alegria particular de quem precisa explicar coisas como um fenômeno chamado Dona Chupetinha -, as exceções estão aí para nos salvar. Dona (ou Tia) Chupetinha é Lizietia Carmem Siqueira Rodrigues, 46 anos, uma representante impagável da alegria suburbana carioca. Dona de um bom humor de rachar catedral, Chupetinha virou queridinha de grande parte dos descolados do Rio de Janeiro à frente de um restaurante montado em plena Rua Paris. Rua Paris, favela de Vigário Geral, Zona Norte da cidade. Para provar sua costelinha de porco, a carne assada com aipim (assim os fluminenses tratam a mandioca), um suculento bife a rolê, uma saborosa farofa e, sobretudo, o ótimo feijão, celebridades atravessam várias vezes os 45 quilômetros que separam a sofisticação made in Zona Sul da favela, conhecida também por abrigar o primeiro núcleo da ONG AfroReggae. Entre outros, conhecem o segundo andar do sobrado da Rua Paris o ministro da Cultura, Gilberto Gil, sua mulher, a empresária e produtora cultural Flora Gil, o rapper Gabriel, o Pensador, os jornalistas Zuenir Ventura e Pedro Bial, a socialite Narcisa Tamborindeguy e o cantor e guitarrista escocês David Byrne, ex-líder da banda Talking Heads. André Skaf, filho do presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Paulo Skaf, também esteve lá. Diante da experiência quase antropológica de passar uma tarde com a mestre-cuca em seu templo, a comida se torna um detalhe e isso, agora, é um elogio.

Tudo é digno de respeito, os preços não poderiam ser mais baixos (entre R$ 5 e R$ 7 por pessoa), mas o grande prato é mesmo Tia Chupetinha. Não há formalidade, nem mesmo a mais elementar, que resista à sua espontaneidade arrebatadora. “C., pare com essa m. de me chamar de senhora ou a gente não vai fazer p. nenhuma de entrevista, heim? Amor, você vai me dar beijinho carinhoso de colinho quando chegar aqui, vai né?”. Pedido feito, pedido aceito, foi fácil, ao entrar no restaurante, imaginar como seria a tal performance. Chupetinha correu em direção ao visitante, parou, sapecou-lhe um abraço forte, levantou as pernas e ordenou: “Segura e beija minha bochecha, seu m.”. Pedido feito, pedido aceito, pedido executado.

O apelido consolidou-se porque a chupeta dos tempos de criança jamais foi abandonada. “Chupo ainda, sim. A turma aqui em Vigário sempre me chamou de Chupetinha. Tenho umas três e aquele chupetão ali, ó, o símbolo da pensão”. E logo corrige: “Pensão, não. Restaurante. Melhor: restaurante, não. Agora, com vocês dizendo que eu sou gostosa, danada, poderosa, é Centro Gastronômico Tia Chupetinha”. E tome gargalhada. Tudo é muito simples, mas limpo e bem cuidado. O casamento da cultura portuguesa com a brasileira gerou no Rio as fartas porções da CCC, a Comida Carioca de Combate. Tia Chupetinha seria CCCC - Comida Caseira Carioca de Combate -, a combinação dessas referências com o que de melhor o subúrbio e o interior do Estado do Rio souberam tomar emprestado de mineiros, nordestinos e africanos.

Muitos chefs talvez sentissem a responsabilidade de cozinhar para uma estrela do quilate de David Byrne. Não foi o caso. “E eu lá sabia quem era esse camarada, meu filho? Eles só me disseram que era um estrelão, assim, um Roberto (Carlos) do país dele, quando ele já estava aqui”, lembra. “Fiquei é tirando onda, cantando umas coisas em inglês. O cara comeu pra caramba, mandou ver na minha carne. Ele é meio esquisitão, né não?”.

Lizietia e seus quatro irmãos nasceram e foram criados em Vigário Geral. Ela perdeu o pai quando tinha sete anos. A mãe, Dona Beatriz, que mora na casa ao lado, fazia faxina e limpava ônibus para sustentar os filhos. O caminho do reconhecimento como cozinheira começou a ser traçado, ironicamente, depois de uma tragédia que abalou o País: a chacina de Vigário Geral. No dia 29 de novembro de 1993, 21 moradores da comunidade foram assassinados por policiais. Nenhuma das vítimas tinha vínculo com a venda de drogas. Chamada a trabalhar como servente na ONG Casa da Paz, criada após a chacina, Chupetinha, sempre generosa, convidou alguns colegas para almoçar diariamente na sua casa. Tempos depois, passou a receber alguma coisa pelo serviço.
Demitida, ela ampliou o número de colegas em sua mesa e a coisa começou a andar. Anos depois, a chegada de operários para obras de saneamento da favela representou um salto ainda maior. Servia 80 refeições por dia. Neste período, ganhou de um engenheiro do projeto material e algum dinheiro para construir a cobertura da casa. A estrutura do restaurante estava montada. Hoje, ela mantém o negócio graças à ajuda do AfroReggae, que encaminha funcionários para fazer refeições, divulga o trabalho e orienta os interessados em conhecer o restaurante. “Devo gratidão e carinho ao (coordenador executivo do AfroReggae, José) Junior”, diz. Chupetinha não vende bebida alcoólica nem recebe pessoas envolvidas com o tráfico. “Eles trabalham no mundo deles e eu no meu, sem interferências”, diz.
A melhor maneira de chegar com segurança ao restaurante é entrar em contato com o núcleo de Vigário Geral do AfroReggae (21-3448-0821). Meses atrás, desavisados, quatro funcionários de uma rede de lojas de varejo fluminense resolveram chegar por conta própria. Foram parados por integrantes do movimento mas, depois da interferência da mestre-cuca e de Dagmar, sua amiga de infância e braço direito na cozinha, tudo terminou bem, entre travessas de feijão, farofa, saladas e generosos pedaços de costelinha.

Chupetinha tem dois filhos (o bailarino Raphael, integrante da companhia de Deborah Colker, e Michele) e dois netos. Mantém há 34 anos um casamento sólido com João Rodrigues, sete anos mais velho do que ela. Ela o conheceu aos 11 anos e, um ano depois, estavam juntos. Doce, de poucas palavras, ele serve de contraponto ao furacão que trata com comovente carinho. Recebida por João, a reportagem de Brasileiros, agora, neste início de noite, será levada por Chupetinha e Dagmar até a saída da favela. No caminho, a última pergunta: “Você abre de noite?” Não se pode dar uma chance nestes termos à verve de Tia Chupetinha. “De noite eu só abro pro João, aquele m. que você acabou de conhecer”. Gargalhada, gargalhada... “Vá com Deus, me dê aqui outro beijo de colinho e volte pra fazer farra, seu p., senão vou dizer pra todo mundo que sua reportagem ficou uma m.” Apenas por precaução: a festa na Rua Paris vai de segunda a sábado, das 11h às 17h.

3 comentários:

Anônimo disse...

Beleza de texto Marini, dá pra sentir o tempero da tia chupetinha.

Anônimo disse...

Olá!
Sou amigo da Chupetinha e comentei com ela a duvulgação desta reportagem em seu Blog.Ela me pediu que colocasse um comentário agradecendo o carinho!
Desde já agradeço
Alexandre Hagge

Eduardo Marini disse...

Alexandre, a Tia Chupetinha é o nosso amor. Ela merece o mundo. Beijos mil.